sábado, 17 de agosto de 2013

O Queer Rap

Nem manos, nem minas: são monas, as novas vozes do rap



O Hip Hop não mudou de cara: deu só uma maquiada. Por entre becos e esquinas do Brooklyn, ou estúdios de New Orleans, uma febre parece instalar-se entre as (aparentemente) inflexíveis bases que sustentam o rap.

Le1f - Um dos mais criativos representantes desta nova safra musical, a música do novaiorquino Leif dialoga com estéticas do Seapunk. Entusiasta de moda, é conhecido pelas letras cáusticas e performance sui generis no palco.


Nem manos, nem minas: são as monas as peças fundamentais que dão suporte à nova vanguarda do rap. Se antes as discussões em torno da vivência em guetos, discriminação e identidade eram atualizações de bandeiras levantadas por ícones como Aretha Franklin, Martin Luther King e grupos como Black Panthers, a temática do corpo, da soberania da liberdade sexual e das discussões sobre a diferença ganham espaço relevante no rap, lançando por terra o machismo, a homofobia e o binarismo comumente presente nos discursos de magnatas da black music, tais como Eminem e Fifty Cent.

Zebra Katz - Conhecido mundialmente após a vinculação de seu hit Ima Red na semana de moda de Paris ano passado, feita pelo designer Rick Owens, Zebra Katz levou sua musicalidade underground a territórios europeus, decisão que lhe rendeu grande projeção, além de publicações elogiosas de jornais como The Guardian, cujas colunas musicais são proféticas quando o assunto são "as apostas do ano".






Se, até então, as mais visíveis interações entre a cultura gay  hip hop apresentavam-se através de expressões de pouca criatividade ( o homo rap é uma delas) e declarações polêmicas de personagens como Frank Ocean ( que logo após ter seu grupo associado a incitações homofóbicas declarou ser um homem o grande amor de sua vida) o Queer Rap deseja muito mais, ao reivindicar a legítima influência da arte Camp, da iconografia New Wave e da estética do vídeo amador para afirmar que não somente " black is beautiful", mas "Queer is cool".

Big Freddia - Celebrado em públicações como Village Voice e The New York Times, este rapper transexual é um dos grandes representantes da bounce music, desdobramento do hip hop surgido em New Orleans.




Outros representantes



THEESatisfaction - Integrando influências do R&B ao rap, as garotas do THEESatisfaction são talvez as mais badaladas expressões do rap alternativo. Muito de sua popularidade está no fato do grupo pertencer ao selo Subpop, que, no passado, lançou ao estrelato bandas como Nirvana, Jesus and Mary Chain e hoje é a gravadora das paulistanas do CSS.

Mykki Blanco - performer, artista e poeta, Michael Quattlebaum Jr ( ou Mykki Blanco, para iniciados) faz um rap experimental, uma decisão pouco usual que chega às raias do bizarro. Suas influências precedem sua reputação artística: Anais Nin, Jean Cocteau, Vaginal Davis e movimentos como riot grrrl e o 
Queercore de Bruce Labruce.


Vídeos relacionados















Texto publicado no jornal O Estado do Maranhão, edição de 17 de agosto de 2013







quarta-feira, 3 de julho de 2013

DAFT PUNK

Enquanto o disco novo de Daft Punk não chega, a nossa retrospectiva explica o sucesso do grupo responsável pela revolução da house music






Talvez não se recordem, mas os resíduos das vossas lembranças mais superficiais atinentes à década de 1990 têm como banda sonora aquilo a que a crítica musical definiu como french touch, corrente musical francesa, protagonizada por grupos de música electrónica como Cassius ou Etienne de Crecy e cujos maiores representantes são os Daft Punk.
french touch, àquela altura, significou uma renovação num campo minado por fórmulas pasteurizadas pela febre Eurodance. Se nos Estados Unidos dos anos 90 o grunge significou revisitar sonoridades como o hardcore e o punk, na cena francesa o acid house e o disco foram os principais géneros responsáveis pela renovação musical que acontecia, numa época em que a cultura das drogas promovida pelas raves dava os seus últimos suspiros.
Os Daft Punk surgiram dentro deste contexto musical. Anónimos, criativos e nostálgicos, o duo apropriou-se das estruturas de géneros populares para se dissociarem do questionável trajecto dado à house music por grupos como Ace of Base, Technotronic e Fun Factory. Com phasers,samplers de disco music e beats em 4 x 4, Guy-Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter integraram a presunção pelo reconhecimento da sua musicalidade pop com a cautela de um projecto cuja mais original e – aparentemente – contraditória proposta é preservar o anonimato dos seus idealizadores.
Com “Homework” (1997), a música electrónica parecia seguir um caminho mais honesto, a julgar pela boa recepção conferida ao álbum por publicações como Village Voice, Stylus Magazine e do crítico musical Alex Rayner, que colocou a estreia dos Daft Punk entre os maiores e mais influentes discos, no seu livro “1001 Albums You Must Hear Before You Die”.


O álbum, produzido integralmente nos estúdios caseiros do grupo, alcançou um grande sucesso de vendas, chegando a integrar o ranking de vendas da Billboard norte-americana e do Australian Albuns Chart. Recebeu disco de ouro, chegando a vender, somente nos Estados Unidos, mais de meio milhão de cópias. Uma nova era parecia anunciar o fim da Eurodance, soterrada por hits como «One More Time», «Alive» e «Around the Wold» (este último teve direito a videoclip dirigido pelo celebrado realizador Michel Gondry).
Em 2001, “Discovery” confirma a reinvenção do pop electrónico, num álbum coeso, fortemente influenciado pelo synth-pop; uma mudança que reconfigurou a sonoridade da banda, levando-a a caminhos distantes do disco, mas preservando a identidade sonora do duo francês no crepúsculo dos anos 2000.
Com “Discovery”, as transformações são bem mais agressivas, e o clima futurista chega às raias do rock electrónico, abusando dos vocoders e da plasticidade minimalista que caracterizou os álbuns anteriores. Considerado pelo duo o melhor de seus registos, “Discovery” obteve boa recepção, facto que se confirma pela nomeação ao Grammy na categoria de melhor disco dance.Singles como «Robot Rock» e «Technologic» (agraciado por um remix da canadense Peaches) e «Human After All» roubaram a atenção das pistas de dança nos quatro cantos do mundo, consolidando o sucesso de uma empreitada caracterizada pelo experimentalismo e pela improvisação do grupo.


O sucesso não parou: seja nas capas desenhadas pelo duo para as garrafas de Coca-Cola, seja assinando a banda sonora para remakes como “Tron”, o clima de mistério e fantasia que envolve a imagem do grupo é constantemente actualizado por aparições públicas, produções e parcerias com diversos artistas.
Este ano, o grupo ressurge com “Random Access Memories”. Carinhosamente baptizado de “RAM”, O álbum foi antecipado por um sem número de anúncios, vídeos publicitários e rumores que correram os quatro cantos do mundo. Do disco, pode-se esperar qualquer coisa, menos a previsibilidade.
Os motivos para essa previsão são vários: a dupla filiação do disco às gravadoras Sony Music e Columbia; o regresso do escritor e compositor Paul Williams; os 74 minutos de duração do álbum, divididos em 13 faixas já confirmadas e a presença do papa da disco musicGiorgio Moroder, declamando um monólogo em uma das canções. Outra personagem que marca presença em “Random Access Memories” é Nile Rodgers, figura importante na consolidação da cena disco norte-americana de 1970.



Se todos estes motivos não foram suficientes para deduzir que o que os Daft Punk trazem é bem ousado (nunca na trajectória do grupo, tantas participações foram contabilizadas), então o que resta é aguardar o dia 21 de Maio, data do lançamento oficial do álbum, que, vale a pena lembrar, já está em pré-venda no iTunes e no My Play Direct, nos formatos de vinil e CD.


Publicado no site Rua de BaixoEdição Nº91, Abril, 2013

segunda-feira, 15 de abril de 2013

O Rock Sintetizado de Bosco Delrey

Apadrinhado pelo DJ Diplo, o músico, nascido em Nova Jérsei, é um dos novos representantes do cenário alternativo de Nova Iorque e admira música brasileira.







Bosco Delrey é um dos artistas mais relevantes na cena eletrônica contemporânea. O músico, que nasceu em Nova Jérsei e passou a sua infância entre as grandes extensões dos milharais que cercavam sua casa, trouxe no DNA sua inclinação criativa.

Sua paixão por música brotou cedo, mas sua ascensão só lhe rendeu êxito quando Bosco despediu-se de casa para conhecer o que Nova Iorque tinha de melhor a lhe oferecer: um cenário multiétnico, apinhado de gente estranha, boas idéias e tribos diversas. Escolheu o Brooklyn como morada, e lá conheceu suas galerias, bandas garajeiras, poetas e artistas que, assim como ele, desenvolveram suas produções à parte das urgências do mercado. 

No distrito novaiorquino, ele se aproximou de gente do calibre de  77Klash, Mad Professor e  Jahdan Blakkamoore, figurões das cenas de dub e dancehall. Mas foi através do DJ e produtor Diplo ( conhecido entre os brasileiros pela sua massiva divulgação internacional do funk carioca) que o cara chamou a atenção da imprensa especializada.



Com uma mistura de rock sintetizado e um visual vintage, Bosco Delrey ganhou afeição do público e foi parar na Mad Decent, selo californiano responsável pela divulgação de artistas como Dillon Francis, Vato Ganzález e os brasileiros do Bonde do Rolê. Lá, aprimorou sua estética, redefiniu suas diretrizes e lançou “Evebody Wah”, um debut marcado pelo sincretismo de rockabilly e música eletrônica, produzido pelo Diplo.

De lá pra cá, Bosco Delrey vem ganhando espaço na cena musical alternativa, promovendo parcerias pontuais , ganhando notoriedade e disseminando sua música pelos mais inóspitos cantos do mundo.

Nesta entrevista, Bosco Delrey  fala sobre o início da carreira, suas influências, música brasileira e adianta novidades sobre seu próximo disco.


Fale um pouco sobre o início de sua carreira musical.

77Klash, um músico de dancehall, encontrou algumas canções minhas no myspace, e então nós começamos a trabalhar numa faixa juntos. Na mesma época, ele enviou uma demo da Azaelia Banks, e eu o encorajei a trabalhar com ela, também. Éramos uma pequena equipe. Daí, fiz uma faixa com a Banks para o Diplo, o que fez com que nós fôssemos apresentados a ele. Eu diria que esse foi o início de minha carreira musical.

Seu trabalho parece trazer experiências do rockabilly para a música eletrônica, uma decisão não usual que renova códigos tradicionais deste estilo, tal qual grupos como  The Cramps, Heavy Trash e Speedball Baby fizeram antes. Fale-me sobre suas influências musicais.

Não conheço o Speed Ball Baby, mas sempre adorei Jon Spencer ( idealizador do coletivo Heavy Trash e líder da banda Jon Spencer Blues Explosion) e The Cramps. Acho que o que a maioria das pessoas me associaria minha música ao rockabilly, mas eu prefiriria o rock ou o punk. Trata-se de várias coisas, mas é muito mais um sentimento do que um som, entende? Recentemente, assisti a uma banda de rockabilly que apresentou suas primeiras músicas com grandes sorrisos na cara e todo aquele visual dos anos 50, e me se senti meio desconfortável com aquilo. Era apenas uma sombra torta de uma imitação. Há uma diferença clara entre a imitação e a canalização.

"Evebody Wah', sua estréia, além da boa recepção da crítica musical, foi privilegiado pela produção do Diplo. Como aconteceu essa parceria? 

Bem, a Mad Decent é co-dirigida pelo Wes (Diplo) e o Jasper Goggins.  Então foi assim que aconteceu. O Diplo ouviu minhas demos e me deu alguns toques sobre a conclusão do álbum. Até tentei convencê-lo a ir comigo para um estúdio em Menphis, mas ele é um cara muito ocupado. Tivemos uma relação mais verbal que escrita, com relação à produção do disco. Queria muito tê-lo por mais tempo na realização do álbum, colocar seus beats nas canções, mas no fim das contas acabei finalizando o disco sozinho.

Que tipos de instrumentos e equipamentos musicais você costuma utilizar para produzir suas músicas?

Eu utilizo instrumentos básicos: guitarra, baixo, bateria, MPC, teclados. Acabei de me mudar pra Paris, então trouxe comigo apenas um laptop e duas guitarras. Isso é tudo o que eu tenho usado ultimamente.

Nos últimos anos, o advento da internet facilitou a procura de várias novas cenas, responsáveis pela atualização do mainstream musical. Eu sei de suas experiências no Brooklyn, um destes grandes nichos culturais. Hoje em dia, em sua opinião, quais são as cenas musicais mais relevantes?

Penso que Nova Iorque sempre será relevante neste aspecto. Apesar de pessoas como Patti Smith ( a artista é uma das representantes da cena punk novaiorquina, junto de grupos como Blondie, Suicide e Television) dizerem que os artistas deveriam se mudar para Detroit ou Austin e fugirem da cara pressão natural das grandes cidades, acho que essa pressão é benéfica para as artes.

Você já ouviu ou conhece alguma coisa da música brasileira?

Sim, eu amo música brasileira. A psicodelia brasileira dos anos 60 é inacreditável. Provavelmente a melhor. Atualmente, estou trabalhando com o Rodrigo Gorky, do Bonde do Rolê e Lovefoxxx do Cansei de Ser Sexy.

Como se dá o seu processo de composição?

Ultimamente, eu sento numa mesa vazia com o notebook e escrevo o que to ouvindo. Eu finalizarei toda a canção. Vou terminar a música inteira assim e então às vezes eu vou colocar algumas batidas para ela ou descobrir qual música seria mais adequada. Eu tento ignorar instrumentos e computadores, tanto quanto possível.

O que você tem ouvido ultimamente?

Tenho ouvido algumas faixas do AlGate’s Storm. Desde que cheguei a França, tenho ouvido as pessoas falarem de Jean Michel Jarre, então tenho ouvido ele um pouco também. Alguns dias atrás, estava ouvindo Stranglers e Teengenerate.

No que você tem trabalhado no momento? Alguma novidade para ser apresentada? Quais os seus planos para o futuro?

Agora,estou finalizando um álbum em Paris. Falta colocar algumas baterias nas minhas demos, então estou passando uma pequena temporada nos estúdios. Espero que o single deste álbum seja lançado no mês de abril, e logo em seguida o álbum inteiro. Eu também espero que essas faixas me levem ao Brasil.




Publicado no jornal O Estado do Maranhão, edição de 14 de abril de 2013.











quarta-feira, 20 de março de 2013

O Revival Naturalista de Ana Paula Maia


Unindo influências de Quentin Tarantino, literatura pulp e narrativas de Rubem Fonseca, a escritora carioca construiu um universo habitado por personagens embrutecidos, porém demasiadamente humanos.






     Ao longo de uma década, a carioca Ana Paula Maia construiu uma trajetória promissora na literatura. A escritora, que já teve empreitadas em bandas de rock, cursos de ciências da computação e aulas de piano clássico, hoje faz parte de uma nova geração de jovens escritores, que apostaram numa produção literária à parte do paradigma que define os romancistas consagrados nas letras nacionais. Na contramão de influências tradicionais, ela prefere interagir com matérias-primas pouco peculiares: narrativas de Rubem Fonseca, estéticas pulp e o cinema icônico de Quentin Tarantino.
     Insólita, visceral e realista, suas estórias ambientam-se em submundos para assimilar sua dinâmica, captar suas particularidades e conhecer a essência de seus habitantes.  Traduzindo como “violência suburbana” o perfil naturalista de sua ficção, Ana Paula Maia apresenta ao leitor uma sucessão de personagens underground: cremadores, assassinos, bicheiros, operadores de britadeira, desentupidores de esgoto e apostadores, seres marginalizados, embrutecidos, parcialmente invisíveis aos olhos desatentos, porém fundamentais à estabilidade de uma estrutura social.
     Com 5 romances, participações em várias antologias e publicações internacionais, a criadora do primeiro folhetim pulp da internet brasileira exibe seus homens-besta como identidades forjadas através do trabalho que executam, o que não a impede de vislumbrar no interior de suas rígidas cascas o último e mais doce fragmento de suas qualidades humanas.
     Nesta entrevista, Ana Paula Maia conversa comigo sobre o início da carreira, suas marcas autorais, novos escritores e futuras publicações.


Primeiramente, eu queria saber o que você estava fazendo antes de começar a escrever.

Eu fazia faculdade de Comunicação Social, lia diversos autores e assistia a filmes e seriados de TV.

Essas experiências anteriores, direta ou indiretamente, influenciaram o surgimento de Habitante das Falhas Subterrâneas, tua estréia, que, inclusive, teve relançamento no fim do ano passado pela editora Oito e Meio. Gostaria que você falasse um pouco sobre este livro, que contrasta com os teus romances sucessores.

Meu romance de estréia fala pouco sobre minhas reais influências e eu ainda não tinha maturidade naquele momento para escrever sobre o que eu gostava. Ou seja, os romances que vieram a seguir. Meu primeiro romance não dialoga com o meu universo particular dentro da literatura, mas foi um projeto de estréia que me ajudou a ter fôlego para escrever os seguintes.
Ele possui uma influência direta com o escritor Salinger e o livro "O apanhador no campo de centeio". Depois disso, em "A guerra dos bastardos", consegui avançar dentro de um texto que realmente dialoga comigo e minhas referências.

Com A Guerra dos Bastardos tu inicia uma empreitada que rompe com o programa de formação iniciado com tua estréia, penetrando pouco a pouco num universo naturalista, responsável pela projeção de seu trabalho na mídia e reconhecimento entre a crítica. Me conta o que influenciou esta mudança de estilo.

Meu estilo literário se inicia em "Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos", porém, em "A Guerra dos bastardos" eu dava os primeiros passos para isso. Gosto quando sou mais enxuta com as palavras, quando o texto é menos digressivo. Mas sim, em "A guerra dos bastardos" eu não mudo meu estilo, mas sim, consigo finalmente escrever sob influência das particularidades do meu olhar a respeito do mundo e também aquela voz autoral torna-se um pouco mais clara. Esse foi o caminho para o livro que viria a seguir: "Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos". Quando finalmente encontrei meu estilo, minha voz autoral.

Muitos escritores não se sentem à vontade para discutir questões que digam respeito a autoria hoje em dia, entretanto, é impossível não perceber nas tuas produções uma marca de estilo, que se expressa na tua opção de escrita, na elaboração dos personagens, na assimilação de tuas influências e em todo o universo pessoal que vai sendo desvelado gradualmente por uma experiência pessoal com a literatura. Como você avalia esta discussão sobre a autoria no seu trabalho?

Quando comecei a escrever eu não pensava em uma marca autoral, mas isso mudou ao longo dos livros e se tornou evidente que eu percorro um caminho particular na literatura brasileira.  Desde então, passei a reconhecer que possuo um texto autoral, marcado por tipos de personagens, diálogos, ambientação e narração. O conjunto formado por esses elementos cria um discurso pessoal, que não é fácil de ser identificado pelo autor de imediato.  Tenho limitações ao narrar um romance, é claro, existem dificuldades, mas tenho liberdade diante da tela em branco e ela não me amedronta, até porque as estórias nascem na minha alma, nas minhas reflexões.
Penso amplamente a respeito do universo que quero narrar e gosto muito de ficar vagando por ele, ouvindo os personagens e buscando a próxima estória. Acontece que eu trafego pelo mesmo universo e ele me agrada e é dele que tiro minhas estórias e só sei falar através da boca de certos tipos de personagens.  A ficção me possibilita aquilo que o capitão Kirk fala em todas as aberturas do seriado Star Trek: "desbravar novos mundos, descobrir novas civilização. Indo aonde nenhum homem jamais esteve"
Bem, de um jeito mais introspectivo, eu visito realidades e possibilidades dentro desse mesmo mundo em que vivo e estou em confronto direto com personagens que me provocam, me assustam e até mesmo me dão medo.

Aproveitando esta discussão sobre autoria, gostaria que você contasse um pouco sobre o personagem Edgar Wilson, que é um personagem-link na tua produção literária.

O Edgar Wilson é um rosto familiar. Desde que ele surgiu, em 2005, nunca mais saiu da minha vida. Apesar de ser fruto da minha imaginação, ele é real (risos). O que eu poderia falar sobre o Edgar... Bom, ele me ajuda a contar algumas estórias, gosto de tê-lo por perto. É como um irmão mais velho que resolve os problemas quando eu não consigo dar conta. Aliás, tenho essa relação com muitos dos meus personagens. Alguns deles me permitem a ir a certos lugares dentro da ficção que eu não poderia ir sozinha.

Você tem participações em várias antologias, que vão da Geração Zero Zero a publicações internacionais, como a Sex’ n’ Bossa, responsáveis pela divulgação de novos escritores brasileiros. Qual a sua relação com estes novos escritores e como você avalia a produção destes conteúdos, num momento em que tanta produção ganha espaço através da diversidade de olhares que tem convergido para os escritores de blogs e outras plataformas?

Tenho participado de muitas antologias. Bem, a minha relação com os novos escritores, em geral, é distante. Tenho uns favoritos, mas sei pouco o que acontece nesse âmbito. Há pouco mais de dez anos, quando eu quis saber o que acontecia no cenário literário brasileiro, poucos antes de publicar o meu primeiro romance, eu comprei uma antologia de contos: "Geração 90 - Manuscritos de computador" ( Antologia organizada pelo Nelson de Oliveira, responsável pela apresentação de escritores “de computador”, tais como Marcelo Mirisola, Marcelino Freire e Cíntia Moscovich). Ali, eu pude conhecer um pouco do panorama e da produção no país. De uns contos eu gostei e de outros não. As antologias são bons meios de se conhecer novos e antigos escritores. Através de um conto, chega-se as obras de um autor.
As antologias de contos ainda são uma seleção de textos que agrada ao leitor que chega a uma livraria, virtual ou física. Para mim, é um meio de se conhecer a produção literária a grosso modo. O leitor é quem decide qual o autor ele quer ler mais detalhadamente.

Além da literatura, você possui interesse em realizar produções em outras mídias ( cinema, por exemplo)?

Sim. Escrevi a adaptação do romance "Santa Maria do Circo", do escritor mexicano David Toscana, em parceria com o ator Guilherme Weber, que vai dirigir o filme.

Li notícias recentes sobre o lançamento de um novo romance teu. Poderia falar sobre este projeto e previsão de lançamento?

Meu novo romance se chama "De gados e homens". Está previsto para este ano, mas ainda não sei desses detalhes. O título pode ser lido como uma brevíssima sinopse do livro. O Edgar Wilson é o protagonista e a estória se passa uns dois anos depois do romance "Carvão animal".
Tudo ocorre num matadouro de gado bovino e nos seus arredores. É um cenário um tanto desolador, mas bonito também. Até que umas coisas estranhas começam a acontecer com o gado e isso começa a afetar a vida daqueles homens e dos moradores da região.
Vai ser difícil comer um hambúrguer outra vez.





Publicado no jornal O Estado do Maranhão, edição de 17 de Março de 2013



Literatura do Mal


Conheça a história da editora independente que começou com escritores virtuais e projetou na mídia o recente legado da literatura underground.




O início 

     Eles começaram anônimos, escrevendo em fanzines eletrônicos, junto de outros colaboradores também anônimos: lá falavam de tudo. Chegaram até a agregar alguns milhares de seguidores fervorosos de suas publicações. A história, até aqui, não é diferente da que muita gente conta quando firma parcerias deste gênero, salvo pelo benefício da obstinação e afirmação da criatividade dos escritores Daniel Pellizzari, Daniel Galera e do artista plástico Guilherme Pila
     Organizando festas, produzindo material para outras colaborações, chegaram, então, a uma conclusão: montar uma editora independente, que pudesse dar cara aos escritores perdidos dispersos em sítios eletrônicos e publicar seus trabalhos.  Sem grana, inscrevem seu projeto na FUNPROARTE, programa de financiamento cultural da Prefeitura de Porto Alegre. Aprovado em primeiro lugar no edital, entre tantos outros concorrentes de diversas áreas, eis que surge  a Livros do Mal. A editora começou assim, como uma vitrine experimental, cujo sucesso consistiu em juntar jovens cabeças e novas idéias, sob um mesmo selo. Inicialmente, publicaram dois livros de contos, Ovelhas que voam se Perdem no Céu, de Pellizzari, e Dentes Guardados, do Galera. Depois Vieram Paulo Scott  Joca Reiners Terron, e mais outros escritores, dando corpo ao projeto.

A estética  
  
     Embora cada um dos escritores possuam características diferenciadas, é patente o modo como cada particularidade tende a se cruzar e integrar harmoniosamente o perfil da editora. Influenciados por gente como Hilda Hilst, Georges Bataille e João Gilberto Noll ( que chegou a escrever a orelha do segundo título de Galera),  a Livros do Mal prima pelo contraponto a todo modelo engessado de literatura produzida e – há algumas décadas – abarcada no grande território do contemporâneo. Preferem definir seu trabalho como uma literatura de gênero, cuja volubilidade está justamente em transitar pelo romance policial, pelo gore, ou pelo surrealismo, sem estabelecer nesse trânsito um lugar de chegada e tampouco deslumbrar-se com o ufanismo pop.
     Suas narrativas, povoadas por personagens suburbanos entediados, situações absurdas e fábulas fantásticas, trazem consigo a agilidade dos contos e o frescor de novas formas de contar história. Gaúcha da gema, prefere abandonar a tendência dos romances históricos por personagens atuais, cuja vida, por mais desinteressante que possa ser, constitui um argumento pertinente para uma boa história. 

O Reconhecimento

     O reconhecimento da editora foi quase imediato: em pouco tempo, já estampavam suas caras em suplementos de jornais como Zero Hora, O Globo, revistas como Época e Bravo, ganhando simpatia, tanto dos jornalistas quanto por parte da crítica especializada.
Em São Paulo, Rio de Janeiro, seus livros ganharam novos espaços, para além das estantes das livrarias gaúchas. Surgem, então outros escritores como Marcelo Benvenutti, Cristiano Baldi, Paulo Bullar. E assim era firmada a idéia inicial da editora, de agregar trabalhos de escritores e publicá-los em seu pequeno catálogo undeground. Outros louros ainda vieram em seguida :Na terra natal, recebe o Prêmio Açorianos de melhor editora; em São Paulo, adaptações para teatro de suas duas primeiras publicações pelo grupo Cemitério de Automóveis; Em Milão, comemoração pela publicação dos já clássicos Ovelhas que voam se Perdem no Céu e Dentes Guardados, traduzidos por Patrizia di Malta.

O Fim
     
      A escolha do formato alternativo da editora – que os escritores preferiam chamar de cooperativa de escritores, inviabilizou a manutenção de suas publicações. Em dada momento, perceberam-se entre a cruz ou espada: criar livros ou distribuí-los. Optaram pela criação.
      O projeto, que nasceu dia o1 de outubro de 2001, que sempre foi encarado com certo afeto, cresceu em tamanho desproporcional ao desejo que os autores mantinham de dar corda à suas publicações, em um formato consideravelmente menor que o percebido, e sumariamente menos burocrático do que o constatado por Daniel Galera, que se viu entre a missão de escolher a carreira de escritor ou editor de livros. Sorte: preferiram escrever e traduzir.
     A livros do Mal, então, decreta, seu fim. Mas deixa marcada a ferro a sua marca: o famoso logotipo de tétrico pinto, que estampa os livros da editora , ficará lembrado não somente pela criatividade de Guilherme Pila, que o elaborou, mas pela emergência do reconhecimento de uma nova literatura – menos responsável, porém vigorosa – no Brasil. Mas seus escritores estão por aí, mantendo a fixação pelos mesmos personagens, pelas mesmas situações no sense, que caracterizavam o frescor de suas narrativas. Seus livros também não se foram, por sorte. Grande parte do catálogo original da editora pode ser facilmente encontrado em sites especializados, a preços razoavelmente módicos.
     Neste curto espaço de tempo em que a editora se manteve, muito do olhar comedido das mídias passou a direcionar-se na procura por novos escritores. Seu legado, além de quebrar paradigmas no modelo literário que insiste em perpetuar sua forma rígida e sua ojeriza por novidades, projetou para o público outros nomes, outras estéticas e a mesma compreensão da literatura como portfólio de um momento frutífero das letras brasileiras.






quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

ADAM ANT | “ADAM ANT IS THE BLUEBLACK HUSSAR IN MARRYING THE GUNNER’S DAUGHTER”

Após um hiato de quase duas décadas, Adam Ant regressa em dose dupla





     Adam Ant surge na música como um ícone complexo. Após a onda glam, que consolidou no rock a integração de música e imagem, Adam emerge da recente new wave com a banda The Ants, trazendo na sua bagagem uma performance cáustica, influenciada pela música punk. Assessorado pelo lendário Malcolm Mclaren, Adam reinventou-se e, como convém ao mercado, distribuiu a cada lançamento dos seus discos uma nova versão de si mesmo, atitude que, não só movimentou a badaladíssima década de 80, como contribuiu para a popularização do videoclip.
     De sua trajectória de sucesso como frontman do grupo destacam-se registos como “Dirk Wears White Sox” (1979) e “Prince Charming” ( 1981), mas nenhum dos citados correspondeu em termos de expectativas e críticas ao sucesso de “Kings of the Wild Frontier”. O álbum, que emerge da ressaca punk, tornou-se conhecido por singles como «Antmusic» e «Dog Eat Dog», e é o que melhor coroa as experiências de um grupo cujo maior mérito foi, sem dúvida, operar influências de iconografias pop em figurinos sui generis. Ocupando o pódio na lista de discos mais vendidos do Reino Unido, o sucesso de “Kings of the Wild Frontier” rendeu ao grupo um Grammy, mas foi incapaz de prorrogar o fim da banda que, ao lado de Japan e Culture Club, reconfiguraram na música aquilo a que a crítica especializada definiria como new romanticism.
     Adam Ant segue a carreira a solo e os seus estigmas acompanham o sucesso de uma empreitada marcada pelo lançamento de “Friend or Foe”. Lançado em 1982, o disco parece confirmar a disposição de Ant, a julgar pela recepção positiva da crítica musical. Com “Strip” (1983), aplainam-se os ânimos, iniciam-se os silêncios, e Adam gradualmente desaparece. Se o vigor do início dos seus álbuns parecera o melhor de seus predicados, em “Vive Le Rock” (1985), aperformance demasiadamente calculada de Adam, somada ao pouco interesse pelo álbum, não deixavam dúvidas sobre o fim de sua carreira. Como uma vedeta decadente, Adam Ant atravessou a década de 90 no meio de confusões, crises de depressão e empreitadas de sucesso na dramaturgia que em quase nada contribuíram para o lançamento de “Manners e Physique” (1990) e “Wonderful” (1995).

     Em 2013, Sir Ant ressurge das cinzas. Renovado. Visivelmente maduro e emocionalmente estável. Lançado dia 21 de Janeiro pelo próprio selo, o Blueblack Hussar Records, “Adam Ant Is the Blueblack Hussar in Marrying the Gunner’s Daughter” ironiza a indústria da música, amplia o seu horizonte de influências musicais e preserva uma identidade musical que, mesmo após uma sucessão de colapsos, mostra a sua firmeza. Lançado como álbum duplo em CD e em edição de luxo para vinil, “Adam Ant Is the Blueblack Hussar in Marrying the Gunner’s Daughter” obteve boa recepção da crítica. Dave Simpson, do The Guardian, descreveu o álbum como um híbrido que reúne os melhores elementos da era dourada de Ant: glam, referência a ícones cult e sexo. Will Hodgkinson, da The Times, não poupou críticas ao formato do álbum, mas destacou a força criativa de Adam, face a conturbadas tentativas para manter o status de artista pop obtido na década de 80.
     Abrindo o álbum, a faixa «Cool Zombie» mostra um Ant musicalmente mais amadurecido, investindo em sistemas melódicos mais trabalhados, no slide guitar e na referência folk. Uma inclinação mid-fi, que remete à sua estreia com os The Ants, é visível durante todo o álbum, como mostra a faixa «Dirty Beast». Homenagens também não são poupadas: as faixas «Who’s a Guffy Bunny» e «Viviene’s Tears» são dedicadas, respectivamente, a Normal Mclaren e Vivienne Westwood, personagens fundamentais na consolidação de uma estética própria aos músicos numa época em que a imagem ocupava lugar fundamental na promoção de alguma novidade no mercado fonográfico. Fechando o álbum, a instrumental «How Can I Say I Miss You?» parece justificar um retorno às origens do post-punk.




“Adam Ant Is the Blueblack Hussar in Marrying the Gunner’s Daughter” é um álbum honesto. Após o hiato de quase duas décadas, Adam Ant está consciente de que o pódio é um espaço conferido aos seus sucessores. Mas está também consciente do legado musical que deixou a bandas como Suede, Elastica e Nine Inch Nails. “Adam Ant Is the Blueblack Hussar in Marrying the Gunner’s Daughter” parece soar como um álbum-ensaio: vai ao lugar de origem para revisar códigos e rever a posição do artista face ao desafio de seduzir um público que, se reconhece anew wave, é pelo seu legado contemporâneo, jamais pela sua inclusão.


Publicado no site Rua de Baixo, Edição Nº89, Fevereiro, 2013

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Podres Pêssegos

No meio termo entre confronto e integração, Peaches mantém firme o laço conceitual entre a cultura underground e sua corruptela mainstream.






Nascida Mary Beth Nisker, a canadense Peaches tem somado a seu currículo uma trajetória marcada pela versatilidade. Seja por sua incipiência técnica, desprovida de virtuoses, ou por seu estilo peculiar, a artista já conta vinte décadas de uma carreira firmada na fusão da atitude underground à estética pop.



Conhecida por suas performances excêntricas e pela forte carga subversiva de suas composições, Peaches coleciona admiradores entre públicos variados, que vão dos bizarros aos junkies, de Madonna a Bjork, carregando sempre consigo uma espécie de responsabilidade negligente, própria de um artista cujas lacunas sempre serão materiais de pesquisa.
De opinião forte e sempre polêmica, Peaches transita sobre os destroços de seus tabus com a mesma normalidade com a qual encara os seus contrapontos, condição sine qua non para a manutenção de seu status quo na cena alternativa.
Em suas apresentações, que reforçam a vitalidade e frescor da artista que já soma 4 décadas, não seria estranho vê-la em suas apresentações depilando axilas, correndo de guitarristas furiosos ou cantando enquanto galopa sobre cavalos infláveis. E aqui está sua sacada: Peaches recicla o questionamento dos clichês, mas à sua maneira, sem o enfado erudito. Muito embora deva ao submundo da música eletrônica a projeção que ostenta – e a atribuição de representar a fertilidade deste nicho, cuja reciclagem sempre determinou boas cifras à indústria fonográfica – a solução de Peaches se encontra na revisão de ícones do mainstream. Paródia de Andy Warhol, faz de seu palco uma espécie de Factory: suas influências – o cinema freak de John Waters, as estranhas  performances de Kate Bush e a arte contemporânea de Cindy Sherman – são readaptados a figurinos futuristas, cenários decadentes e apresentações onde a sexualidade demarca seu território fundamental.
Nada se perde: nem clássicos como Grease, tampouco duetos com Iggy Pop. Seu mérito está na feitura de sua imagem e no esboço livre de seu trânsito na música. Híbrida, prefere contrariar o legado feminista e fincar no chão sua bandeira antípoda: contestando acusações de inveja do pênis, Peaches inverte a cena e prefere definir sua inveja como hermafrodita.Mas, a julgar pela trajetória, sua criatividade é irrestrita, se comparada a tentativas fracassadas de artistas ditos comerciais – e quem não o é? – que tentaram ultrapassar o glamour dos palcos pelo debut no cinema.
Peaches, que recentemente apresentou seu musical autobiográfico Peaches does Herself no Festival Internacional de Cinema Independente de Toronto, já foi aclamada pela crítica, ao conseguir a incrível façanha de trazer ao tablado sua adaptação de Jesus Cristo Super Star, clássico da Broadway, dirigido por Andrew Lloyd. O desempenho, que agradou em muito os críticos de teatro, novamente reafirma a teoria que toma lacunas técnicas como lócus reservados à revisão dos críticos sobre o papel da criação. Ao artista sempre coube – mesmo numa indústria tão redutora como a musical – a responsabilidade pela manutenção da imagem singular e o anúncio da descoberta.
Quem percorreu a década de 80, ousaria surpreender-se com os famosos sutiãs cônicos de Jean Paul Gaultier, que caíram muito bem nos discretos seios de Madonna. Quem viveu mais tempo a trajetória da música pop, acompanhou saudoso toda a revisão de questionamentos delegados ao movimento punk, cujos ícones londrinos – também incipientes – mudaram toda a trajetória da música com um irrisório trio de acordes e o famoso lema “Do it your self”.
Alguém, ao questionar-se sobre o que seria a arte, definiu-a como uma forma de consciência. E é de sua variedade de consciências que depende a sua existência enquanto tal. Fora deste círculo, seria qualquer coisa.
Peaches representa esta consciência conflituosa do artista empenhado em entregar-se ao público como um mensageiro. Redefiniu parâmetros da música eletrônica enfatizando seu caráter performático, atualizou discussões sobre gênero ao questionar discursos normativos, mas, fundamentalmente, trouxe ao público a emergência de novas mensagens, numa indústria musical que anuncia,a cada descompasso de uma perecível estréia, os sinais de sua decadência.



Publicado no site Psicodelia.org



As Personas Musicais de Thomas Fec

Thomas Fec

A trajetória do Thomas Fec é um tour de force. Cada gesto habilidoso do músico, sempre afeito a intervenções, indica não somente uma constante profusão de idéias, mas de personas. No início de 90, ele era Allegheny White Fish, um enigmático protagonista que distribuia ao mundo sua abstração musical, investindo no noise como poética. Logo depois, o satanstompingcaterpillars surge como um novo conceito, afirmando a indisposição de Fec com o trabalho anterior ao apostar em sonoridades melódicas e palatáveis.
A reviravolta musical,é claro, deixa indícios, mas atualiza o enigma: Thomas Fec despede-se de Allegheny White Fish para incorporar Tobacco, personagem invariavelmente indecifrável que ganha notoriedade através de seu mais conhecido projeto musical: o Black Moth Super Rainbow.
O grupo, que nasceu nos anos 2000 em Pittsburgh, possui quatro álbuns e é partícipe de novos nichos musicais, sendo constantemente relacionado à nova psicodelia. Sua sonoridade, que traz consigo uma espécie de futurismo vintage, é amparada pelos pianos Rhodes, mellotrons, vocoders e synths analógicos, que são a marca registrada do grupo – que tem em sua formação The Seven Fields of Aphelion, Iffernaut, Ryan Graveface e Bullsmear, pseudônimos nada peculiares para um projeto idem.


Presenças fundamentais em festivais como WIDR Barking Tuna Susquatch! Music Festival e South by Southwest, dividem-se entre projetos solos de seus membros, parcerias como grupos como Octopus Project e turnês com The Flaming Lips. Neste segundo semestre de 2012, o grupo lançou Cobra Juicy, disco que redefine temáticas, mas que conserva a identidade musical que caracteriza a carreira do Black Moth Super Rainbow.
Cobra Juicy surge financiado por uma campanha idealizada por Tobacco no início de julho, que consistia em arrecadar fundos através da promoção de shows, distribuição de EPs e download de singles. A idéia foi um sucesso e possibilitou o lançamento do álbum, que chegou às lojas dia 23 de outubro.
Thomas Fec como Tobacco
Lançado pelo selo Rad Cult, Cobra Juicy sinaliza uma nova inquietude do grupo de Thomas Fac. Pedindo emprestadas influências do glam e do rap, o Black Moth Super Rainbow assimila temáticas mais urbanas, que se divorciam do perfil mais lúdico que os definia em álbuns como Falling Through a Field e Eating Us. Nenhum ônus: Cobra Juicy opera como um lugar de passagem: as intervenções presentes no disco, mais do que ilustrar rupturas, ampliam o universo conceitual de um grupo cuja originalidade consiste em administrar mudanças sem efetuar prejuízos ao seu estilo, como atestam as faixas Windshied Smasher e Hairspray Heart.
De certa forma, o Black Moth Super Rainbow parece crescer para dentro: sua musicalidade, que assim como o ska e o math rock, é tecida a partir de uma frase musical simplificada, reitera a opção por um estilo cuja flexibilidade dos arranjos sempre indica um norte autoral. Cobra Juicy despede-se do impressionismo silvícola dos álbuns antecessores para ambientar-se nas pistas de dança.
Em Gangs in the Garden essa decisão confirma seu êxito: uma balada electro que usa do velho sistema simplista de beats para integrar o conceito de um projeto que captura os signos da cultura de massa, dispersos numa paisagem iluminada pela lisergia. Em We Burn, o grupo abusa do bootle neck numa canção lo-fi que remete aos primeiros álbuns do Beck (figurão que já elencou parcerias com Tobacco no álbum solo Maniac Meat). Por fim, vale conferir a faixa Spraypaint, uma baladinha onde o vocoder é o link que mantém a unidade estética do grupo.
Cobra Juicy é um álbum-referência para discorrer sobre a trajetória do Black Moth Super Rainbow. Não por ser o último, mas por interagir com novas influências sem apagar uma marca de estilo. Pelo contrário, reitera as considerações do seu mentor Thomas Fec, ao considerar a mudança como um caminho sinuoso, um trajeto que privilegia a ousadia em detrimento da exaustão.



Publicado no site Scream & Yell