Nascida Mary Beth Nisker, a canadense Peaches tem somado a seu currículo uma trajetória marcada pela versatilidade. Seja por sua incipiência técnica, desprovida de virtuoses, ou por seu estilo peculiar, a artista já conta vinte décadas de uma carreira firmada na fusão da atitude underground à estética pop.
Conhecida por suas performances excêntricas e pela forte carga subversiva de suas composições, Peaches coleciona admiradores entre públicos variados, que vão dos bizarros aos junkies, de Madonna a Bjork, carregando sempre consigo uma espécie de responsabilidade negligente, própria de um artista cujas lacunas sempre serão materiais de pesquisa.
De opinião forte e sempre polêmica, Peaches transita sobre os destroços de seus tabus com a mesma normalidade com a qual encara os seus contrapontos, condição sine qua non para a manutenção de seu status quo na cena alternativa.
Em suas apresentações, que reforçam a vitalidade e frescor da artista que já soma 4 décadas, não seria estranho vê-la em suas apresentações depilando axilas, correndo de guitarristas furiosos ou cantando enquanto galopa sobre cavalos infláveis. E aqui está sua sacada: Peaches recicla o questionamento dos clichês, mas à sua maneira, sem o enfado erudito. Muito embora deva ao submundo da música eletrônica a projeção que ostenta – e a atribuição de representar a fertilidade deste nicho, cuja reciclagem sempre determinou boas cifras à indústria fonográfica – a solução de Peaches se encontra na revisão de ícones do mainstream. Paródia de Andy Warhol, faz de seu palco uma espécie de Factory: suas influências – o cinema freak de John Waters, as estranhas performances de Kate Bush e a arte contemporânea de Cindy Sherman – são readaptados a figurinos futuristas, cenários decadentes e apresentações onde a sexualidade demarca seu território fundamental.
Nada se perde: nem clássicos como Grease, tampouco duetos com Iggy Pop. Seu mérito está na feitura de sua imagem e no esboço livre de seu trânsito na música. Híbrida, prefere contrariar o legado feminista e fincar no chão sua bandeira antípoda: contestando acusações de inveja do pênis, Peaches inverte a cena e prefere definir sua inveja como hermafrodita.Mas, a julgar pela trajetória, sua criatividade é irrestrita, se comparada a tentativas fracassadas de artistas ditos comerciais – e quem não o é? – que tentaram ultrapassar o glamour dos palcos pelo debut no cinema.
Peaches, que recentemente apresentou seu musical autobiográfico Peaches does Herself no Festival Internacional de Cinema Independente de Toronto, já foi aclamada pela crítica, ao conseguir a incrível façanha de trazer ao tablado sua adaptação de Jesus Cristo Super Star, clássico da Broadway, dirigido por Andrew Lloyd. O desempenho, que agradou em muito os críticos de teatro, novamente reafirma a teoria que toma lacunas técnicas como lócus reservados à revisão dos críticos sobre o papel da criação. Ao artista sempre coube – mesmo numa indústria tão redutora como a musical – a responsabilidade pela manutenção da imagem singular e o anúncio da descoberta.
Quem percorreu a década de 80, ousaria surpreender-se com os famosos sutiãs cônicos de Jean Paul Gaultier, que caíram muito bem nos discretos seios de Madonna. Quem viveu mais tempo a trajetória da música pop, acompanhou saudoso toda a revisão de questionamentos delegados ao movimento punk, cujos ícones londrinos – também incipientes – mudaram toda a trajetória da música com um irrisório trio de acordes e o famoso lema “Do it your self”.
Alguém, ao questionar-se sobre o que seria a arte, definiu-a como uma forma de consciência. E é de sua variedade de consciências que depende a sua existência enquanto tal. Fora deste círculo, seria qualquer coisa.
Peaches representa esta consciência conflituosa do artista empenhado em entregar-se ao público como um mensageiro. Redefiniu parâmetros da música eletrônica enfatizando seu caráter performático, atualizou discussões sobre gênero ao questionar discursos normativos, mas, fundamentalmente, trouxe ao público a emergência de novas mensagens, numa indústria musical que anuncia,a cada descompasso de uma perecível estréia, os sinais de sua decadência.
Publicado no site Psicodelia.org