quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Cenas de horror à brasileira



É fato inquestionável que o cinema independente ganhou projeção no país nestes últimos anos. Embora passe por transformações, encare grandes desafios e sofra interdições quando o problema diz respeito à sua distribuição, esse modelo de produção tem mostrado seu êxito, difundindo-se em plataformas como redes sociais, sites de compartilhamento de vídeos e pequenas empresas de publicidade dirigidas ao formato.

O resultado desse esforço homérico se expressa naquilo que caracteriza cada produção: uma reconfiguração do status amador do filme. Típica de experiências como o cinema underground novaiorquino de Jonas Mekas, Maya Deren e Jack Smith e de realizadores vinculados ao cinema marginal brasileiro do fim da década de 1960, essa atitude de revisão da linguagem cinematográfica é responsável pela reconfiguração do cinema em geral e das produções nacionais em particular. Nascido no Espírito Santo, o cineasta Rodrigo Aragão aparece em cena trazendo ao cinema brasileiro uma típica experiência de internacionalização. Cineasta de gênero, ele imprimiu ao Splatter (uma vertente do filme de horror que se concentra em representações visuais superlativas de sangue e violência) uma assinatura tupiniquim, que trouxe à tela monstros do folclore e personagens carregados de regionalismo, imersos numa infusão de suor e sangue que daria inveja a realizadores como o mago do horror Herschell Gordon Lewis.

Fã de diretores como Sam Raimi e Peter Jackson, o cineasta e roteirista fascinou-se desde a infância por técnicas de maquiagem e efeitos especiais, das quais se apropriou a ponto de hoje coordenar oficinas e construir sozinho as bestas animatrônicas que permeiam o universo trash de Mar Negro, sua mais recente produção.

 O terror vem das águas 



Lançado este ano, Mar Negro encerra a trilogia do horror de Rodrigo Aragão, que tem início com as produções Mangue Negro (2008) e Noite do Chupacabra (2011). Para além do roteiro carregado pela atmosfera fantástica, as tramas trazem consigo um fundo crítico, ao colocarem em voga a discussão sobre o desrespeito à natureza. Mar Negro se passa no distrito de Perocão, litoral do Espírito Santo. Na trama, uma estranha mancha negra chega ao litoral, causando mortes e destruição a uma pequena comunidade de pescadores.

O filme foi orçado em R$ 50 mil, uma cifra irrisória, que não lhe rendeu grandes prejuízos. Ao contrário: ao apelar para a produção artesanal, o filme ganhou status de cult e viajou o mundo, representando o Brasil em festivais no México, Estados Unidos, Espanha e outros países.

“Em 2013, tivemos novamente vontade de apostar no cinema de terror brasileiro e vimos Mar Negro. Eu já conhecia o cinema de Rodrigo Aragão e sempre pensei que seus filmes mereciam ser vistos na tela grande, então decidimos nos arriscar”, diz Raffaele Petrini, proprietário da Petrini Filmes, empresa responsável pela distribuição do filme no Brasil. “Em um país onde o cinema depende quase exclusivamente de editais públicos ou de leis de incentivo, o surgimento de uma obra deste tamanho realizada com investimentos privados, é algo sempre mais raro. Mar Negro encarna o verdadeiro espírito do cinema independente: é um filme de qualidade, sem concessões, feito com orçamento mínimo, mas que não tem nada a invejar das grandes produções internacionais”, acrescenta o empresário.

Mesmo gozando de prestígio internacional, chegando a ter seus direitos de exibição vendidos a países como Holanda, Bélgica e Japão, o cinema trash de Rodrigo Aragão parece sofrer de um certo mal-estar no Brasil. Contrariando o sucesso de gêneros como a Chanchada, que levou ao cinema milhares de brasileiros nas décadas de 1930 e 1940, suas produções ainda enfrentam resistência por parte do público.

“Na minha opinião, o que falta é confiança da parte do mercado exibidor para filmes deste nicho. Infelizmente o sucesso de um filme como Mar Negro não será decretado somente pelo público, mas dependerá principalmente dos exibidores, que devem dar uma chance a esse tipo de cinema”, diz Petrini.

Embora o sucesso de público seja fruto de esquemas de distribuição e apresentação de um filme, o que parece justificar a indisposição do grande público brasileiro é algo anterior às estratégias de mercado atreladas ao cinema independente. A raiz deste incômodo reside no fato de que o cinema de Rodrigo Aragão adaptou-se ao contexto do país. Nele, residem tipos caricatos, cuja interpretação não peca pelo excesso de sotaque, mas pela representação de uma identidade. Sua fusão de comédia e horror arquitetam a superestrutura subjetiva de um país cujo atual surto desenvolvimentista coloca em regime de opacidade o seu próprio reflexo.

Mar Negro não aposta na atmosfera de mistério tradicional das narrativas de terror. O que há de fobia no filme relaciona-se ao seu realismo e sua objetividade, opções que afetam a recepção de um espectador seduzido por tramas standard, personagens assépticos e tipos globalizados. Se a impossibilidade de mimetização de um gênero resulta na exploração das peculiaridades de um nicho, há de se convir que Mar Negro tenha um sentido social: artesanal, independente e pioneiro, ele chama a atenção do espectador para aquilo que lhe é aparentemente desagradável. Expõe o olhar a outros regimes de excesso, transformando a experiência cinematográfica num ritual de identificação sumariamente realista.

Mais

Mar Negro entrará em cartaz nos Cines Lume e Praia Grande no dia 27 de dezembro, data de seu lançamento nacional. A pré-estreia no fim deste mês, no Festival Lume De Cinema.


Especial para o Alternativo do O Estado-MA

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